O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Luiz Fux, determinou que o governo adote “medidas imediatas de proteção especial” que impeçam o uso de recursos provenientes de programas sociais e assistenciais, como o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC), em apostas on-line popularmente conhecidas como “bets”.
Na decisão, Fux estabelece, ainda, que regras previstas na Portaria nº 1.231/2024 sobre a proibição de ações de comunicação, de publicidade e propaganda e de marketing dirigidas a crianças e adolescentes tenham “aplicação imediata”.
“A presente decisão tem caráter liminar, submetida ao referendo do plenário do Supremo Tribunal Federal, independentemente de sua eficácia imediata”, ressaltou o ministro.
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Na segunda-feira (11), o procurador-geral da República, Paulo Gonet Branco, entrou com ação direta de inconstitucionalidade (ADI) junto ao STF contra as legislações que permitiram a “exploração e a divulgação indiscriminada de sistemas de apostas virtuais baseadas em eventos esportivos” – popularmente conhecidas como “bets”– que atuam por meio de eventos de jogos on-line.
“Além das leis federais, a ação pede a inconstitucionalidade do conjunto de portarias editadas pelo Ministério da Fazenda que regulamentam a modalidade de apostas de quota fixa. Essa modalidade consiste em sistema de apostas em torno de eventos reais ou virtuais em que é definido, no momento da efetivação da aposta, quanto o apostador poderá ganhar no caso de acerto”, justifica a PGR.
Na ação apresentada ao STF, Gonet argumenta que a legislação das apostas on-line: “fere direitos sociais à saúde e à alimentação, direitos do consumidor, de propriedade, da criança e do adolescente, do idoso e da pessoa com deficiência”, e que, além disso, entra em “linha de choque com princípios da ordem econômica e do mercado interno e com o dever do Estado de proteção da unidade familiar”.
Ainda segundo o procurador, essas legislações não seguem as restrições constitucionais previstas para propagandas de produtos que colocam em risco a saúde das pessoas.
A Lei nº 13.756/2018 instituiu essa modalidade de apostas, ao mesmo tempo em que indica para onde parte dos recursos devem ser destinados. No entanto, segundo a PGR, não regulamenta as apostas virtuais.
“Esse novo mercado surgiu sem critérios de proteção dos usuários do serviço e do mercado nacional, circunstância agravada pelo fato de os sites e operadores estarem, muitas vezes, sediados em outros países, ou seja, a legislação brasileira não incide, dificultando o controle e a fiscalização, bem como a tributação da atividade”, detalha a procuradoria.
Já a Lei nº 14.790/2023 foi instituída com o objetivo de amenizar os impactos sociais negativos deste novo mercado. Gonet, no entanto, avalia que isso não foi feito de forma suficiente. Nesse sentido, ele solicitou pedido cautelar para suspender algumas normas que teriam, como consequência, a proibição das “bets”.
Regulação
Na segunda-feira (11), Fux deu início à audiência pública no âmbito do STF convocada por ele e finalizada na terça-feira (12), para ouvir os argumentos de especialistas sobre os efeitos da proliferação das apostas na economia e na saúde mental dos apostadores. No entendimento do ministro, a conclusão da audiência é que o mercado não pode funcionar sem regulação. “Sem regulação, não se pode permanecer nessa atividade. Isso é o que eu vou avaliar”, declarou.
O processo que motiva o debate foi protocolado na Corte pela Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC). Fux é o relator do processo. A entidade questiona a Lei 14.790/2023, norma que regulamentou as apostas online de quota fixa. Na ação direta de inconstitucionalidade (ADI), a CNC diz que a legislação, ao promover a prática de jogos de azar, causa impactos negativos nas classes sociais menos favorecidas. Além disso, a entidade cita que o crescimento do endividamento das famílias. De acordo com levantamento divulgado em agosto deste ano pelo Banco Central, os beneficiários do Bolsa Família gastaram R$ 3 bilhões em “bets”.
O Partido Solidariedade e a CNC alegam que a lei aumentou o endividamento das famílias e pode incentivar o vício nos jogos. Além disso, apontam o risco de crianças e adolescentes terem acesso às apostas.
Durante a fase da audiência, realizada na segunda-feira, o diretor de supervisão do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), Rafael Bezerra Ximenes de Vasconcelos, defendeu que a regulamentação do setor de apostas deve levar em conta padrões internacionais de proteção contra a lavagem de dinheiro. Ele ressaltou que o ramo de apostas é um setor que envolve riscos diferenciados de uso da atividade para lavagem e criminalidade correlata.
O advogado geral da União, Jorge Messias, também se posicionou favorável à regulamentação das apostas on-line. Para Messias, as regras são necessárias para proteger as pessoas mais vulneráveis. Ele demonstrou preocupação com o vício em apostas e disse que o comportamento é um problema de saúde pública.
Messias citou que estudos do Ministério da Saúde mostram que os transtornos provocados pelo vício em jogos se assemelham aos problemas causados por substâncias químicas. “As consequências de tal vício podem ser devastadoras, levando à deterioração dos laços familiares e a perda de estabilidade econômica. As apostas de cotas fixas se infiltraram silenciosamente nos lares brasileiros, atingindo principalmente as famílias de baixa renda.”
Durante a audiência, a economista e representante do Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec), Ione Amorim, afirmou que a atual regulamentação do setor é “fraca e lenta”. Ione também citou relatos de apostadores que perderam dinheiro, se endividaram e cometeram suicídio. Conforme levantamento feito pelo Idec, as principais reclamações de consumidores contra as plataformas de jogos envolvem bloqueio de contas sem justificativa, falta de pagamento de saldo a receber e relatos de vício e dependência. “As apostas e jogos eletrônicos estão muito mais direcionados à exploração da sorte, com falsas promessas de ganhos rápidos, do que ao lazer e ao entretenimento.”
Até mesmo para o advogado da Associação Nacional de Jogos e Loterias, Pietro Cardia, o problema das “bets” atualmente é fruto de um mercado legalizado, mas não regulado. “É justamente este cenário que causou essa realidade atual, com os seus malefícios que estamos experimentando. Há quatro mil sites de apostas ativos hoje, diversos com fraudes, que não é a realidade daqueles que buscam o jogo lícito e regulado. Um jogo saudável, que não engaje crianças e adolescentes e que seja um ponto relevante da economia brasileira e não um fruto de endividamento das famílias.”
Impactos para a sociedade
Para a ministra dos Direitos Humanos e da Cidadania, Macaé Evaristo, o crescimento do mercado de apostas causa ruína financeira nas famílias brasileiras e incentiva comportamentos compulsivos. “Com as chamadas “bets”, estamos permitindo a instalação de um cassino no bolso de cada brasileiro. As dificuldades de nosso País, ainda em desenvolvimento, o desejo das pessoas por um futuro melhor, a falta de perspectiva econômica, acaba sendo um terreno fértil para a aposta desesperada e triste nos jogos.”
O Ministério da Igualdade Racial, por sua vez, manifestou preocupação com as apostas on-line durante a audiência pública. Entre as informações levadas pela Pasta, está o uso do dinheiro do Bolsa Família pelos beneficiários Isso pode indicar um impacto importante entre os cidadãos mais vulneráveis em termos econômicos, entre eles as pessoas negras.
Volume de apostas
Durante a audiência, o representante do Banco Central (BC), Rogerio Antônio Lucca, reapresentou os dados divulgados em agosto deste ano sobre o tamanho econômico do mercado de apostas no Brasil. A partir do monitoramento do sistema brasileiro de pagamentos, o BC descobriu que as empresas de “bets” receberam cerca de R$ 20 bilhões de 24 milhões de apostadores, que têm perfil entre 20 e 40 anos de idade. Os números do órgão também mostram que 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família gastaram cerca de R$ 3 bilhões em apostas. A aposta média foi de R$ 100.
Lucca também ressaltou que o BC não tem poderes para interferir no mercado de apostas, mas colabora com o fornecimento de informações sobre os impactos financeiros na economia brasileira. “O Banco Central não tem competência sobre as atividades de apostas. A participação do BC nesse debate é tentar trazer luz no que diz respeito ao tamanho deste mercado, avaliação do impacto na estabilidade financeira e o desenvolvimento de ações de cidadania financeira.”
CPI
A senadora Soraya Thronicke, do Podemos (MS), será a relatora da CPI das Bets, instalada na terça-feira (12) no Senado. O presidente será o senador Dr. Hiran, do PP (RR); e o vice, Alessandro Vieira, do MDB (SE).
E já na primeira reunião, a relatora deixou bem claro qual deverá ser o foco. “Esse assunto é seríssimo. Isso aqui não é uma brincadeira e jamais terminará em pizza.” Um dos alvos da CPI deverá ser os influenciadores digitais. Outro, a questão da saúde pública e do impacto no orçamento de milhares de famílias.
Pesquisa feita pelo DataSenado mostra que, no Brasil, são 22 milhões de apostadores por mês. É necessário olhar para essa parcela da população, segundo o presidente da CPI, Dr Hiran. “Eu acho que nós vamos corrigir um erro que nós cometemos no passado, porque nós não aprovamos os cassinos físicos e colocamos cassinos dentro da casa das pessoas. Isso foi um erro.”
A CPI tem o cronograma apertado. Quer agilizar as audiências e análise de documentos antes do recesso, que começa em 23 de dezembro.
A próxima reunião está marcada para terça que vem (19), quando começa a análise de requerimentos, entre eles o de convocação de autoridades como Ricardo Liáu, presidente do Coaf.
Fonte: Agência Brasil