Por Edevaldo Figueiredo
Inspirada na histórica Park Slope Food Coop, de Nova York, a Gomo Coop chega a capital paulista com a proposta de transformar o ato de consumir em um exercício de cidadania, pertencimento e responsabilidade coletiva.
Fundada após quatro anos de trabalho colaborativo, estudos e diálogos com cooperativas internacionais, a Gomo adaptou o modelo americano à realidade brasileira. A estrutura foi desenhada para atender ao hábito local de concentrar compras em um único lugar, combinando um hortifruti 100% agroecológico com uma mercearia completa, que reúne produtos orgânicos, da sociobiodiversidade e itens convencionais criteriosamente selecionados.
Na prática, o funcionamento da cooperativa se apoia no engajamento das pessoas cooperantes, que se tornam coproprietárias e colaboradoras da loja. A cada mês, cada integrante contribui com um turno de trabalho e participa das decisões estratégicas, ajudando a reduzir custos, garantir preços justos e fortalecer uma cadeia produtiva ética, que prioriza pequenos agricultores, comunidades tradicionais e empreendimentos sociais.
Com uma missão centrada na emancipação alimentar e no consumo responsável, a Gomo também pretende ocupar um papel formativo na cidade. A cooperativa planeja desenvolver oficinas, rodas de conversa, vivências no campo e ações culturais que ampliem a compreensão sobre a origem dos alimentos, a relação entre campo e cidade e o impacto das escolhas de consumo no meio ambiente e na sociedade.
Localizada na rua Santa Isabel, 172, na Vila Buarque, a primeira loja abre as portas impulsionada pelo entusiasmo de moradores e de uma comunidade crescente de cooperantes. Sem planos de expansão, no momento, a Gomo quer consolidar um modelo sólido e inspirador em São Paulo — e, ao mesmo tempo, compartilhar aprendizados para estimular que outras iniciativas semelhantes floresçam pelo Brasil.
Confira a seguir, a entrevista exclusiva realizada pela SuperHiper com o coordenador geral da Gomo Coop, Chico Lima.
Quais foram as inspirações para criar a Gomo Coop e como vocês adaptaram o modelo para a realidade de São Paulo?
A principal inspiração da Gomo Coop veio da Park Slope Food Coop, um supermercado cooperativo que funciona há mais de 50 anos no Brooklyn, Nova York, e é hoje uma referência mundial de consumo participativo.
O que mais nos inspirou foi o caráter revolucionário e transformador desse modelo: em vez de separar quem consome de quem faz o negócio acontecer, ele une essas dimensões.
Na Park Slope e na Gomo quem é dono também colabora e cuida do espaço coletivo. Essa combinação entre propriedade compartilhada, trabalho cooperativo e formação de comunidade é o que transforma o ato de consumir em um exercício de cidadania, solidariedade e responsabilidade.
A ideia de que o consumo pode ser uma forma de organização comunitária, de propagar bons produtos escolhidos a partir de princípios éticos e a preços justos, nos tocou profundamente.
Entendemos que o modelo da Park Slope representava uma alternativa concreta de consumo sustentável e ético, e que seus princípios de autogestão e transparência poderiam ser trazidos para São Paulo com coerência e solidez.
O processo de adaptação foi longo e cuidadoso: foram quatro anos de trabalho coletivo e estudo, com reuniões semanais, trocas diretas com integrantes da Park Slope Food Coop e diálogos com outras cooperativas internacionais do mesmo modelo.
Nesse período, o grupo fundador da Gomo estruturou as bases: carta de princípios, política de compras, diretrizes de comunicação, estruturas de governança, planos de negócios e procedimentos operacionais padrão e também realizou pesquisas sobre hábitos de consumo no Brasil, para compreender como adaptar o formato à cultura local.
Entendemos, por exemplo, que no Brasil a maioria das pessoas prefere fazer todas as suas compras em um único lugar. Por isso, a Gomo foi estruturada para oferecer uma mercearia completa com produtos orgânicos e convencionais acessíveis e um hortifruti 100% agroecológico, ampliando o alcance dos produtos de pequenos produtores e fortalecendo suas redes de venda.
Como funciona a participação dos consumidores na Gomo Coop? Quais são as responsabilidades e vantagens para os cooperados?
A Gomo Coop é uma cooperativa de consumo participativa, o que significa que as pessoas que consomem também são coproprietárias e colaboradoras, contribuindo com o funcionamento da loja.
Cada pessoa cooperante adquire uma cota-parte do capital social e passa a ter voz e voto nas decisões coletivas, além de contribuir com um turno de 3 horas por mês de trabalho em tarefas essenciais, como atendimento, reposição, limpeza, organização do estoque ou apoio administrativo.
Essa participação reduz custos operacionais e torna possível oferecer produtos de qualidade a preços justos, dentro de uma lógica sem fins lucrativos.
As sobras — já que em cooperativas não se fala em lucro, mas em sobras — não são distribuídas entre os sócios, mas reinvestidas na própria cooperativa, em melhorias na infraestrutura e descontos diretos nas prateleiras.
Entre as vantagens de participar estão:
- Fazer parte de uma comunidade solidária e transparente, que pratica a economia solidária no cotidiano;
- Acessar produtos de qualidade, livres de agrotóxicos e provenientes de cadeias justas;
- Participar das decisões coletivas e da gestão do próprio supermercado;
- Construir vínculos reais com outras pessoas e com quem produz o alimento que chega à mesa.
Nos primeiros meses de funcionamento, para que as pessoas possam conhecer melhor a Gomo, operaremos vendas para pessoas não-cooperantes também, de forma que as pessoas cooperantes terão um preço mais barato do que as pessoas não-cooperantes, como uma forma de incentivar os consumidores a serem cooperantes, mostrando que com trabalho coletivo organizado, temos a possibilidade de melhores preços.
Qual o papel da Gomo Coop na promoção do consumo sustentável e na valorização da produção local?
A Gomo Coop tem como missão promover a emancipação alimentar e o consumo responsável, incentivando práticas cotidianas de sustentabilidade e fortalecendo redes de produção de base local e justa.
Ao adotar o modelo participativo, a Gomo propõe um novo jeito de consumir com consciência, pertencimento e corresponsabilidade.
Seguimos princípios da economia solidária, da sociobiodiversidade e da agroecologia, e buscamos encurtar as cadeias de produção e distribuição, conectando quem produz e quem consome de forma direta e ética.
Valorizamos o trabalho de pequenos produtores, comunidades tradicionais, cooperativas, empreendimentos de mulheres, pessoas negras, LGBTQIA+ e pessoas com deficiência, conforme expressa nossa carta de princípios.
Nosso papel é também ser um espaço de educação para o consumo, onde as pessoas possam compreender a origem dos produtos, as relações de trabalho envolvidas e o impacto de suas escolhas.
Além disso, a Gomo tem o compromisso ético de se engajar em relações comerciais justas com quem produz, respeitando os preços e valores definidos pelos produtores e reconhecendo o trabalho no campo.
Nosso modelo, ao unir um hortifruti 100% agroecológico a uma mercearia completa, cria uma via concreta e sustentável para o escoamento dos alimentos produzidos por pequenos agricultores e produtores locais.
Ao permitir que as pessoas façam todas as suas compras em um só lugar, sem precisar dividir a compra entre mercados distintos, ampliamos a circulação desses produtos, fortalecendo os produtores e tornando o consumo responsável mais acessível.
Que tipos de produtos e fornecedores vocês planejam priorizar para compor o mix de itens da loja?
Nosso sortimento será diverso, pensado para que cada pessoa cooperante possa realizar todas as suas compras em um único lugar, conciliando acessibilidade, qualidade e impacto positivo.
A Política de Compras da Gomo Coop estabelece critérios claros de priorização:
- Produtos orgânicos, agroecológicos e da sociobiodiversidade;
- Produção de pequenos agricultores, cooperativas, comunidades tradicionais ou grupos em situação de vulnerabilidade social;
- Cadeias éticas, transparentes e com relações de trabalho justas;
- Itens com baixo impacto ambiental e que respeitem o bem-estar de todos os seres;
- Produtos in natura ou minimamente processados, com boa qualidade nutricional e preço acessível.
Ao mesmo tempo, para garantir a viabilidade do consumo cotidiano, também incluiremos opções convencionais, sempre observando a procedência e evitando produtos ligados a trabalho escravo, desmatamento ilegal, OGM ou empresas com más práticas.

Integrantes da Gomo Coop.
De que forma a cooperativa pretende engajar a comunidade local para além do consumo, como em ações culturais e educativas?
A educação é um dos pilares centrais da Gomo Coop e atravessa todos os aspectos da nossa atuação.
Acreditamos que o consumo responsável e a emancipação alimentar passam pelo acesso à informação, à vivência coletiva e ao diálogo entre campo e cidade.
Por isso, a Gomo pretende se engajar em ações educativas e culturais que ampliem a consciência sobre o alimento, sua origem e as relações que o tornam possível.
Essas atividades incluirão oficinas, rodas de conversa, mutirões e vivências no campo com pequenos produtores, além de encontros na loja que abordem temas como cooperativismo, economia solidária, agroecologia, segurança alimentar e cultura alimentar.
Queremos que a loja funcione também como um espaço de aprendizado e troca de saberes, aproximando pessoas cooperantes, produtores e a comunidade do entorno.
Essas ações farão parte de uma segunda fase do projeto, após a inauguração e consolidação da operação da loja.
Mas desde o início, a Gomo já nasce com essa vocação educativa: ser um espaço que inspira consciência e pertencimento, onde o ato de comprar se transforma em um ato de cooperação e aprendizado coletivo.
Como a Gomo Coop pretende garantir preços justos e competitivos para os consumidores e, ao mesmo tempo, beneficiar pequenos produtores?
Nosso modelo elimina intermediários e reduz custos fixos por meio da participação direta das pessoas cooperantes, o que torna possível oferecer produtos de qualidade a preços competitivos, sem comprometer a remuneração de quem produz.
A margem de preço é definida com base apenas nos custos operacionais e de aquisição, sem objetivo de lucro.
Todo resultado positivo é reinvestido na cooperativa, seja em melhorias, expansão ou redução de preços. Assim, quem consome é também quem sustenta e se beneficia da operação.
Além disso, a Gomo adota uma política de compras justa, que considera o preço mínimo digno para os produtores, garantindo que a economia solidária se reflita em toda a cadeia.
Quanto maior o número de cooperantes participando e comprando na Gomo, maior o giro, menores os custos e mais acessíveis os preços, num ciclo virtuoso de cooperação e benefício mútuo.
Qual será o modelo de governança da cooperativa e como os cooperados poderão participar das decisões estratégicas?
Desde a sua fundação, a Gomo Coop se organiza com base na sociocracia, um modelo de governança participativa que distribui o poder de decisão de forma horizontal.
Na sociocracia, as pessoas cooperantes se organizam em círculos interligados, que representam diferentes áreas de atuação e tomam decisões por consentimento, buscando soluções que atendam ao coletivo.
Durante os quatro anos de estruturação da Gomo, esse modelo foi essencial para organizar o trabalho coletivo, desenvolver as políticas internas e fortalecer a cultura de colaboração e confiança.
Com a abertura da loja, a Gomo passa a combinar essa base sociocrática com uma estrutura operacional mais direta, adequada ao funcionamento cotidiano de um supermercado.
Na prática, isso significa que setores estratégicos terão autonomia de decisão, sempre pautados pelos princípios e diretrizes definidos coletivamente.
As decisões estratégicas e de maior impacto continuam sendo tomadas de forma coletiva, especialmente por meio da Assembleia Geral, que é o órgão máximo de deliberação da cooperativa.
Todas as pessoas cooperantes têm direito a um voto, e para garantir igualdade e representatividade, a Gomo aplica uma política de valor de cotas-partes único, evitando que se crie a impressão de que alguém tenha mais poder de decisão por deter maior capital.
A governança também é guiada por princípios de transparência financeira: todas as movimentações e prestações de contas são apresentadas às pessoas cooperantes, assegurando que o uso dos recursos e os resultados da operação sejam sempre publicizados e acessíveis às pessoas coooperantes.
Quais os principais desafios que vocês têm enfrentado para abrir a primeira loja em São Paulo?
Os principais desafios têm sido ligados à reforma do imóvel e à formação da base de pessoas cooperantes. Como em toda obra, a reforma traz surpresas e ajustes contínuos, mas tem sido conduzida com muito cuidado e dedicação, combinando o trabalho técnico com mutirões realizados pelas próprias pessoas cooperantes em atividades mais simples.
Outro grande desafio é a captação de novas pessoas cooperantes. Já somos mais de 260 integrantes, mas ainda precisamos ampliar esse número para garantir a operação da loja de forma sólida e sustentável.
Esse processo de mobilização tem sido intenso e muito positivo, com novas adesões semanais e uma rede crescente de pessoas comprometidas com o projeto e com a construção de um outro modo de consumir.
Como foi a escolha do endereço para a abertura da primeira loja?
A escolha do endereço foi guiada pela ideia de acessibilidade e centralidade. Buscamos um local no coração de São Paulo, para que pessoas de diferentes regiões pudessem chegar com facilidade.
Entendemos que estar em uma área central torna a loja mais democrática e acessível, enquanto um bairro mais específico tenderia a atender apenas ao público local.
Ao mesmo tempo, reconhecemos que o entorno da loja terá papel essencial na construção da comunidade cooperante. Por isso, procuramos uma região que tivesse afinidade com os valores da Gomo — um público com interesse em consumo responsável, economia solidária e alimentação saudável.
Outro critério fundamental foi a facilidade de acesso por transporte público, especialmente por corredores de ônibus e estações de metrô, garantindo que o espaço seja realmente aberto e acolhedor.
A primeira loja da Gomo Coop está localizada na rua Santa Isabel, 172, na Vila Buarque. Uma área viva, diversa e bem conectada ao restante da cidade, que reflete o espírito de comunidade e pluralidade que queremos cultivar.
Qual a expectativa dos moradores da região?
Nas nossas comunicações e trocas ao longo do processo de divulgação, temos encontrado muitas pessoas moradoras da região que demonstram entusiasmo e curiosidade em relação à chegada da Gomo Coop.
A percepção geral é de expectativa positiva diante de um modelo diferente de supermercado cooperativo, participativo e voltado à economia solidária que vai ampliar o acesso a produtos de qualidade, agroecológicos e a preços justos.
Acreditamos que esse retorno tem a ver também com o perfil do entorno, composto por pessoas interessadas em consumo consciente, cultura local e novas formas de organização comunitária.
A Gomo surge como uma oportunidade concreta de fortalecer esses valores no cotidiano do bairro.
Como vocês planejam expandir o modelo da Gomo Coop para outras regiões ou cidades no futuro?
A Gomo Coop não tem planos de expansão. A Gomo é, em si, um projeto pensado para São Paulo, construído coletivamente por pessoas da cidade e voltado para atender a este território.
No entanto, faz parte dos nossos princípios compartilhar conhecimento e inspirar novas iniciativas. Assim como fomos inspirados e tivemos muitas trocas com cooperativas internacionais, também queremos auxiliar na replicação desse modelo em outras cidades do Brasil.